sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Condorcet e o direito das mulheres à educação.




Este trecho das Cinco memórias sobre a instrução pública (escritas em 1791 e apresentadas à Assembléia Nacional Constituinte em 1792), do marquês de Condorcet (Jean-Antoine-Nicolas de Caritat; 1743-1794) referente à educação das mulheres pode ser lida como uma problematização do post anterior  sobre a "pedagogia diferenciada", mostrando o substrato conservador de alguns de seus postulados, que um pensador que viveu há 200 anos percebeu de forma cristalina. Condorcet defendeu um sistema de ensino para a França revolucionária que deveria ser gratuito, universal e independente, tanto dos poderes religiosos como do próprio poder político que estava em construção (nesse ponto discorda do "catecismo republicano"). Para o iluminista, a ignorância e a desigualdade no acesso à instrução são os principais alicerces que sustentam o edifício da tirania. Desse modo, o conhecimento é o veículo fundamental para a igualdade e a soberania popular. Cada memória compõe um projeto amplo que engloba temas como  a organização da escola, formação dos professores, estruturação do currículo, educação das crianças e dos adultos, e até mesmo questões sobre aposentadoria dos docentes. Notável sua recusa em não confundir educação com propaganda política e doutrinação. 
Dentre os revolucionários, Condorcet foi o mais radical defensor da igualdade de direitos entre os sexos (e não apenas algumas mudanças no estatuto jurídico da mulher), inclusive o direito de voto. Contra um forte imaginário social; afirmava que a mulher possuía aptidão para as ciências. Para isso, recorre a fatos pouco conhecidos dos leitores brasileiros, a presença de mulheres lecionando Medicina, Filosofia e outros saberes em Universidades da Itália setecentista (apesar de enorme resistência e discriminação que elas enfrentavam naquele contexto).

Todavia, apesar do prestígio intelectual  que  desfrutava, suas ideias não tiveram repercussão, sendo mal conhecidas, criticadas superficialmente ou mesmo vítimas de escárnio. Também é inquietante o silêncio de Mirabeau, Danton e Robespierre sobre a questão. Predominou a visão de Rousseau, de que a mulher devia governar o lar, enquanto a vida pública e a política estavam destinadas aos homens.

Com tradução e apresentação de Maria das Graças de Souza, professora de Filosofia da FFLCH-USP, as Cinco memórias sobre a instrução pública foi lançada pela Editora Unesp em 2008. Falta um aparato crítico para o leitor não familiarizado com o contexto político, social e cultural do tema em discussão. Talvez possa ser acrescido em  edições futuras. 

Para um maior aprofundamento do tema, recomendo a seguinte bibliografia básica:  Maria Lúcia Speedo Hilsdorf  Pensando a educação nos tempos modernos. São Paulo: Edusp, 1998; Carlota Boto A escola do homem novo:entre o Iluminismo e a Revolução francesa. São Paulo: Editora Unesp, 1996; Elisabeth Badinter(apresentação)  Palavras de homens (1790-1793). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991 e  Tzevetan Todorov O espírito das luzes. São Paulo: Barcarolla, 2008

É necessário que as mulheres compartilhem a instrução comum dada aos homens.

1 - Para que possam controlar a instrução que é dada aos seus filhos

A instrução pública, para ser digna desse nome, deve se estender à generalidade dos cidadãos, mas é impossível que as crianças a aproveitem, se, limitadas às lições que recebem de um mestre comum, não tiverem um professor que possa cuidar de seus estudos, no intervalo das lições, prepará-las para recebê-las, facilitar a sua compreensão, completar enfim aquilo que um momento de ausência ou de  distração as fez perder.
Ora, de quem as crianças dos cidadãos pobres poderão receber esse auxílio se não for de suas mães, que, dedicadas aos cuidados da família ou entregues a trabalhos sedentários, parecem chamadas a cumprir esse dever? Os trabalhos dos homens, que, quase sempre, os ocupam fora de casa, não lhes permitiriam consagrar-se a essatarefa. Seria, pois, impossível estabelecer na instrução a igualdade necessária à manutenção dos direitos dos homens, sem a qual não se poderia nem mesmo empregar nela legitimamente os recursos das propriedades nacionais, se, não fazendo as mulheres percorrerem pelo menos os primeiros graus da instrução comum, não as colocássemos em condições de cuidar da instrução de seus filhos.

2 - Porque a falta de instrução das mulheres introduziria nas famílias uma desigualdade contrária à sua felicidade

Aliás, não se poderia estabelecer a instrução só para os homens, sem introduzir uma desigualdade notável não somente entre marido e mulher, mas também entre irmão e irmã, entre filho e mãe. Ora, nada seria mais contrário à pureza e à felicidade dos costumes domésticos. A igualdade é, em todo lugar, mas sobretudo nas famílias, o primeiro elemento da felicidade, da paz e das virtudes. Que autoridade poderia ter a ternura maternal , se a ignorância destinasse as mães a serem para suas crianças um objeto de ridículo e de desprezo? Dir-se-á, talvez, que exagero esse perigo; que, atualmente, se oferecem aos jovens conhecimentos que não somente suas mães, mas mesmo seus pais não possuem, sem que, contudo, isso resulte em tantos incovenientes. Todavia, deve-se observar, em primeiro lugar, que a maioria dos conhecimentos, considerados inúteis pelos pais e freqüentemente pelas próprias crianças, não dá a estas, na sua opinião, nenhuma superioridade. E hoje são conhecimentos realmente úteis que se lhes quer ensinar. Com efeito, trata-se de uma educação geral, e os incovenientes dessa superioridade seriam bem mais notáveis do que numa educação reservada às classes em que a polidez, os costumes e a vantagem dada aos pais pelo gozo de sua fortuna impedem que os filhos se tornem vaidosos demais de sua ciência nascente. A propósito, os que puderam observar jovens de famílias pobres, às quais o acaso fornece uma educação cultivada, sentirão facilmente o quanto este temor tem fundamento.

3 - Porque é um meio de fazer os homens conservarem os conhecimentos que adquiriram em sua juventude

Acrescentarei ainda que os homens que tiverem aproveitado uma instrução pública conservarão bem mais facilmente seus benefícios, se encontrarem em suas mulheres uma instrução maiso u menos igual à sua; se puderem fazer com elas leituras que devem manter os seus conhecimentos; se, no intervalo que separa sua infância de seu estabelecimento, a instrução que lhes é preparada para essa época não for estranha às pessoas pelas quais se sentem atraídos por uma inclinação natural.

4 - Porque as mulheres têm o mesmo direito que os homens à instrução pública

Enfim, as mulheres tem os mesmos direitos que os homens; logo, elas têm o direito de obter as mesmas facilidades para adquirir as luzes, que podem lhes dar os meios de exercer realmente tais direitos, com uma mesma independência e numa extensão igual.

A instrução deve ser dada em comum, e as mulheres não podem ser excluídas do ensino.

Já que a instrução deve ser de modo geral a mesma, o ensino deve ser comum e confiado a um mesmo mestre, que possa ser escolhido indiferentemente num ou outro sexo.

As mulheres foram, algumas vezes, encarregadas do ensino na Itália, e com sucesso.

Várias mulheres ocuparam cátedras de ensino, nas mais célebres universidades da Itália, cumprindo com glória suas funções de professoras nas ciências mais elevadas, sem que tenha resultado disso nenhum prejuízo nem o menor incoveniente, nem a melhor reclamação, nem mesmo alguma zombaria, num país que não pode ser considerado, contudo, isento de preconceitos, onde não reina a simplicidade nem a pureza dos costumes.

Necessidade dessa reunião para a facilidade e a economia da instrução.

A reunião das crianças de ambos os sexos, numa mesma escola, é praticamente necessária para a primeira educação; seria difícil estabelecer duas escolas em cada vilarejo e encontrar, sobretudo nos primeiros tempos,  quantidade suficiente de mestres, se nos limitássems a escolhê-los apenas num dos sexos.

Longe de ser perigosa, a instrução comum é útil aos costumes.

Aliás, essa reunião, sempre em público e sob os olhos dos mestres, longe de ser um perigo para os costumes, protege ao contrário contra as diversas espécies de corrupção, cuja principal causa é a separação dos sexos no final da infância ou nos primeiros anos da juventude. Nessa idade, os sentidos fazem a imaginação divagar, e muito freqüentemente sem retorno, se uma doce esperança não  a  fixar sobre objetos mais legítimos. Tais hábitos, aviltantes ou perigosos, são quase sempre, são quase sempre os erros de uma juventude enganada em seus desejos, condenada à corrupção pelo tédio e extinguindo, nos falsos prazeres, uma sensibilidade atormentada por sua triste e solitária servidão.

Não se deve estabelecer uma separação que só seria real para os ricos.

Não é sob uma constituição igual e livre que seria permitido estabelecer uma separação ilusória  para a grande pluralidade das famílias. Ora, jamais essa separação nas escolas poderia ser real para o habitante do campo, nem para a parte pouco rica das cidades. Assim, a reunião nas escolas só diminuiria os inconveniente daquela outra que, para essas classes, não se pode evitar nas ações ordinárias da vida, onde ela não é, contudo, exposta aos olhares de testemunhas da mesma idade, nem submetida à vigilância do mestre. Rousseau, que atribuía à pureza dos costumas uma importância talvez exagerada, queria, pelo interesse mesmo dessa pureza, que os dois sexos se misturassem em suas diversões. Haveria perigo maior se os reuníssemos para ocupações mais sérias?

A principal causa da separação dos sexos são a avareza e o orgulho.

Não nos enganemos. Estas ideias de separação rigorosa não devem ser atribuídas à severidade da moral religiosa, essa astúcia inventada pela política sacerdotal para dominar os espíritos. O orgulho e a avareza têm pelo menos parte igual nisso; a hipocrisia dos moralistas quis prestar homenagem interessada a tais vícios. A generalização dessas opiniões austeras deve-se, de um lado, ao temor das alianças desiguais e, de outro, ao medo da recusa de consagrar as ligações fundadas em relações pessoais. Deve-se, pois, longe de favorecê-las, procurar combatê-las, num país onde se quer que a legislação obedeça somente à natureza e à razão e seja conforme a justiça. Nas instituições de uma nação livre, tudo deve tender para a igualdade, não somente porque ela é também um direito dos homens, mas porque a manutenção da ordem e da paz o determina imperiosamente. Uma constituição que estabelece a igualdade política nunca será durável nem pacífica se a misturamos com instituições que mantêm os preconceitos favoráveis à desigualdade.

Seria perigoso conservar o espírito de desigualdade nas mulheres, porque isso impediria de destruir esse espírito nos homens.

O perigo seria muito maior se, enquanto uma educação comum acostumasse as crianças  de um sexo a se considerarem iguais, a impossibilidade de estabelecer uma igualdade semelhante para as crianças do outro sexo as abandonasse a uma educação solitária e doméstica. O espírito de desigualdade que se conservaria num sexo logo se estenderia sobre ambos, resultando no que até aqui vimos acontecer com a igualdade encontrada em nossos colégios, a qual desaparece para sempre, no mesmo momento em que o estudante crêtornar-se um homem.

A reunião dos sexos numa mesma escola favorece a emulação, e a faz surgir sob o princípio do sentimento de benevolência, e não de sentimentos pessoais, como ocorre com a disputa nos colégios.

Algumas pessoas poderiam temer que a instrução necessariamente prolongada além da infância seja recebida com muita distração por seres ocupados com interesses mais vivos e mais impressionantes. Contudo, esse temor é mal fundado. Se as distrações são um mal, este será mais que compensado pela emulação inspirada pelo desejo de merecer a estima da pessoa amada ou de obter a estima da família. Tal emulação seria mais geralmente útil do que a disputa que tem por princípio o amor da glória ou o orgulho, pois o verdadeiro amor da glória não é uma paixão de criança nem um sentimento a se tornar geral, na espécie humana. Querer inspirar esse amor em homens medíocres (e homens medíocres podem, em contraposição, obter os primeiros prêmios em sua classe) seria condená-los à inveja. Este último gênero de disputa, ao despertar paixões de ódio, ao inspirar nas crianças o sentimento ridículo de uma importância pessoal, produz mais mal do que bem, ao aumentar a atividade do espírito.
A vida humana não é uma luta na qual os rivais disputam prêmios; é uma viagem que irmãos fazem em comum e na qual cada um, empregando suas forças para o bem de todos, é recompensado pelas doçuras de uma benevolência recíproca, pelo prazer ligado ao sentimento de ter merecido o reconhecimento ou a estima. A emulação que tivesse por princípio o desejo de ser amado ou de ser considerado por suas qualidades absolutas, e não por sua superioridade sobre outrem, poderia tornar-se também muito poderosa; ela teria a vantagem de desenvolver e fortalecer os sentimentos cujo hábito é útil adquirir, enquanto essas coroas de nossos colégios, sob as quais um aluno acredita que já é um grande homem, só dão origem a uma vaidade pueril de que uma sábia instrução deve nos preservar, se por infelicidade tal germe estivesse na natureza e não em nossas instituições desastradas. O hábito de querer ser o primeiro é ridículo e uma infelicidade para aquele que o adquiriu, constituindo uma verdadeira calamidade para aqueles que a sorte condena a viver junto dele. O hábito de necessitar merecer a estima conduz, ao contrário, a esta paz interior que torna a felicidade possível e a virtude fácil.

Fonte: CONDORCET Cinco memórias sobre a instrução públicapp.58-65


Nenhum comentário: