sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Dupla maternidade e função paterna.


Um caso de dupla maternidade reconhecida pela justiça paulista, conforme notícia da folha uol de 30/08/11, gerou uma enxurrada de comentários. Kaylla Brito Santarelli, de três anos, receberá uma nova certidão de nascimento, em que constarão os nomes de Janaína Santarelli, que a gerou, e de Iara Brito, companheira da mãe biológica, com quem vive há quatro anos. A menina foi gerada por meio de uma fertilização com doador desconhecido.

Este evento é mais um capítulo na história da reconfiguração dos modelos de família na contemporaneidade. As reações negativas eram previsíveis e compreendem prognósticos sombrios a respeito do desenvolvimento psíquico da menina. Algo como um ser condenado à “infelicidade”, “inadaptado” ao meio social, sujeito a crises de identidade, passível de sofrer abuso sexual por parte do par responsável, bullying por parte de colegas de escola, dificuldade em reconhecer a diferença sexual e por aí vai. Não faltaram recursos à “teorias conspiratórias”, insinuações de “ameaças à democracia” e a liberdade de expressão, maquinações milionárias de grupos internacionais, não faltando menções à atuação do demônio e tudo o que é possível à imaginação humana.

O teor religioso dos comentaristas contrários era forte, assim como referências a uma pretensa “ordem natural das coisas” a ser vilipendiada (representada pelo "Direito Natural" ou a observância da chamada "Lei Natural"). Transgressão cujas consequências seriam catastróficas para todos.Assim, a carga prescritiva e intervencionista é grande. Predomina um amálgama entre conservadorismo cristão e sociologia durkheimiana, no sentido em que os indivíduos tem que se resignar frente a norma social da maioria, caso contrário a sociedade humana entraria em colapso. Sempre com alguém afirmando algo do tipo "vários estudos demonstram ..." os riscos deste novo tipo de relação. Embora não tenha visto nenhum link ou referência bibliográfica relevante ao assunto em debate.

Não vejo a necessidade de transcrever alguns exemplos, alguns bastante grosseiros e preconceituosos. Com certeza, parte dos juízos negativos tem a ver com a insegurança que esta nova situação provoca e a força do senso comum e concepções naturalizadas a respeito da vida familiar e das relações humanas e foram feitos "com a melhor das intenções". O leitor interessado pode recorrer à página da Folha e consultar os mais de 2200 comentários e se desejar, fazer o seu.

O principal “temor” que acomete aqueles preocupados com a situação da menina seria o famigerada necessidade da “presença da figura paterna”, tal como é entendida pelos improvisados psicólogos e sociólogos amadores que se dispuseram a debater no fórum do jornal, ou seja, um indivíduo do sexo masculino.

Quando uma nova realidade emerge e toma corpo, as ciências sociais, a psicanálise, o direito e as psicologias devem interpretá-la, sem juízos apriorísticos, para depois construir e fornecer instrumentais teóricos necessários a compreensão dos novos fenómenos e, se preciso auxiliar as pessoas envolvidas nestes processos.

A família como laço social estruturado em torno da procriação, organizando-se dentro das duas grandes ordens do biológico (diferença sexual) e do simbólico (proibição do incesto e outros interditos)continuará existindo. Todavia este laço familiar pode variar historicamente.

Segundo Elizabeth Roudinesco (2003)a família ocidental passou por três fases evolutivas: a primeira, denominada "tradicional", que assegurava a transmissão do patrimônio e era regida pelo poder do pai (numa transposição direta, para o coração do mundo privado, do direito divino dos reis reconhecido publicamente no regime da monarquia, estabelecida num mundo imutável); a segunda, "moderna", regida por uma lógica afetiva, romântica, onde o casal se escolhe sem a interferência dos pais (ou sem o peso que esta tinha na forma "tradicional"), procurando uma satisfação amorosa e sentimental.O poder e o direito sobre os filhos é dividido entre os pais e o Estado e/ ou entre pais e mães.E, por fim, a terceira, dita "contemporânea ou pós-moderna", quando a transmissão da autoridade vai ficando cada vez mais complexa em função das rupturas e recomposições que a família vai sofrendo.

Desse modo surgiram novas configurações como a homoparentalidade (ou seja, situação em que pelo menos um dos pais se assume como homossexual), a coparentalidade (quando uma mãe lésbica ou um pai gay elaboram o projeto de ter e criar uma criança com um parceiro, de modo que um é o pai biológico e o outro é o pai social que participa da criação do filho, além de casos de adoção por "casais" (ou pares) gays e o recurso à inseminação artificial. A partir da definição de família que expus acima negar a legitimidade dessas realidades parece algo arbitrário. É um processo que ainda está em curso e prosseguirá por bom tempo...

Mas afinal, o que seria esta função paterna?

O Complexo de Édipo faz parte da teoria montada por Sigmund Freud e fala de investimentos afetivos que fazemos em nossos primeiros anos de vida, ligados aos nossos “cuidadores”(que cumprem a função de cuidados com a criança, como o pai e a mãe, ou pessoas nestas funções) e que nos ajudam a estabelecer os vínculos afetivos e o investimento no outro(objeto externo).

Quando nos apropriarmos dos conceitos da teoria psicanalítica de Freud a Lacan, vamos encontrar a definição da função paterna enquanto aquela amarrada ao fato de poder fazer emergir a marca da Lei – a Lei do Pai – no psiquismo do filho. A marca da Lei no psiquismo, também denominada por Nome-do-Pai, protege o filho contra a doença mental (no sentido de “salvar” o filho de uma relação dual,circular, de alienação ao corpo materno,) lançando-o
para o "mundo", ou melhor, no estado da separação: lugar de constituição do sujeito do desejo.

corporificada), isto é, a lei da proibição do incesto, e nesse sentido o seu lugar é o de um terceiro na lógica da estrutura, o mediador do desejo da mãe e do filho. Isto possibilita à criança ingressar no mundo da linguagem, do simbólico, da cultura.

Após este arrazoado que elaborei fica mais compreensível, assim espero, a lúcida sentença da juíza Débora Ribeiro: "O importante para a criança é que tenha figuras significativas que exerçam as funções parentais, independente de suas opções sexuais".

Referências bibliográficas:

DOR,Joël O pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1991 Exposição acessível sobre a função paterna em Freud e Lacan. O autor não sustenta e m momento algum ser possível ou impossível a possibilidade de mulheres homossexuais sustentarem a função paterna. Deixa a questão em aberto.

PERELSON,Simone A parentalidade homossexual: uma exposição do debate psicanalítico no cenário francês atual. In Revista Estudos Feministas . vol.14 no.3 Florianópolis Set./Dez. 2006 (pode ser acessado em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2006000300008&script=sci_arttext)
Aborda as polêmicas sobre a parentalidade homossexual no campo psicanalítico francês que, como sabemo, é bastante influente no contexto basileiro.

ROUDINESCO, Elizabeth A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. A historiadora e psicanalista francesa analisa a evolução histórica-cultural da família ocidental para, depois, discutir a questão da sua atual desordem e implicações na saúde emocional de seus membros.

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